FELIZ SURPRESA PÓSTIMA


HÁ TEMPOS ATRÁS...
Geraldo Generoso
I

1.    Eis que de Jeú nasceu Peres, no mês de nizam, às margens do ribeiro Arnon, na terra que pertencera a Ló por herança.
2.    E ainda tenro de dias, Peres já  se extasiava com os verdores das planícies e, até o deserto de Quedemote se lhe fazia propício aos olhos e aos sentidos.
3.    E era abundante o número de amigos que dele se acercava.
4.    Seus dias se contavam por venturas sem conta e sua presença marcava as festas e os banquetes, onde nasciam espontaneamente muitas e novas amizades.
5.    De sua cítara saíam louvores à vida, entre cânticos intermináveis, soprados  pela pujança e vigor de sua juventude   e o número de amigos aumentava a cada dia.

II

1.    Estando Jeú avançado em anos, e ciente da vocação de seu herdeiro para festas, danças e folguedos, bem como sua indiferença aos cuidados para com o mundo, o ancião o chamou, com voz cansada,  para uma exortação:
2.    Peres, filho meu, de tudo quanto vos deixar ao apagar-me os olhos para esta vida, mantenha o cuidado de preservar o nosso tesouro e bem guardar a tua herança.
3.    Pois é certo que se os teus haveres se acabarem, exatamente quando isto acontecer, terás somada ao rigor desta provação a perda de quantos tens por amigos, já que em tais não vejo coincidir boa escolha de tua parte.

III

1.    E estando o velho Jeú ainda a proferir estas palavras, sentiu Peres que era prudente o seu falar, nele encontrando sabedoria.
2.    Assim, sucedeu que numa tarde do mês primeiro, Jeú entrou em sua vivenda e foi ter ao leito, desobrigando-se da oferenda das primícias, cujo tempo era chegado, e eram doídos os seus lombos e compungido o seu coração.
3.    Porém, num extremo esforço reunindo o último ceitil de vida que lhe restava, chamou Peres ante si para um derradeiro aviso:
4.    Meu amado filho, que chamei Peres desde o ventre de sua mãe, ouve as minhas palavras e escuta o meu conselho, porque te será como maçãs de ouro em salva de prata.
5.    Inclina-me os teus ouvidos e exortar-te-ei com máximas de grande proveito.
6.    - Eis-me aqui, meu pai, fala que teu filho escuta – disse Peres.



IV

1.    E Jeú falou-lhe demonstrando plena lucidez, com voz pausada:
2.    Deixo-te, meu filho, entre hipócritas e fariseus, mas procura viver bem os teus dias, respeitando a mulher do teu próximo e a ninguém te fazendo pesado, porque disso se agrada a lei e os profetas.
3.    Deixo-te ovelhas em abundância; bois para o arado e muares para o teu transporte, assim como cavalos e cabritos e terra onde possas lavrar e semear para o teu sustento e o sustento de nossa descendência.
4.    Deixo-te mais, amado filho Peres, muitas onças de talentos e grande porção de dracmas, que te tomará mais de um dia e de uma noite para contar-lhes o número e conferir-lhes o valor.
5.    De tudo isto sois ciente, meu amado filho, mas se suceder que um dia, do que bem o preveni, desaparecer o teu tesouro como água sorvida pela terra seca, e forem teus muares e eqüinos a leilão; e te tirarem o boi do teu arado e as tuas vacas de ordenha e, se enfim, até tuas vestes te forem por cobiça de teus credores, atenta bem para este meu último conselho.

V

1.    Há em nosso celeiro, dos tempos ainda de meu pai Quisran,  cujas palavras sempre escutei desde a mocidade, uma corda pendente do teto que, deixada da  serventia de jungir os bois para as fainas, valer-te-á por forca e instrumento do fim dessa tua vida, se acontecer ficares, entre a dor da miséria e o opróbrio do abandono.
2.    E já era cansada a garganta de Jeú.
3.    Ditas estas últimas palavras, exalou o ancião o último suspiro, segurando a mão de seu primogênito Peres, até que a morte lhe afrouxasse o pulso por completo.
4.    Assim, Jeú recolheu-se aos seus ancestrais adormecidos nos arredores de Jericó, cobrindo-se com o silêncio do seu último refúgio.

VI

1.    Peres rasgou suas vestes, raspou a cabeça e banhou-se de cinzas, fazendo ao mundo conhecida  a dor de sua orfandade.
2.    E sucedeu que vieram amigos e o consolaram.
3.    Levaram-no a lugares de divertimento e gula.
4.    Conduziram-no aos lupanares onde deu azo aos prazeres em todas as suas formas.
5.    Seu lar se fez em casa de pasto para onde vinham amigos e amigos dos amigos,  e o caminho de sua morada passou a ser conhecido desde as extremidades de Jope até os confins da Samaria.
6.    E os amigos, todos eles, riam-se de seus gracejos e cantavam sob o som de sua harpa.
7.    Muitos se apressavam em desatar-lhe as alparcas para melhor folga de seus pés, afeitos sempre à danças e viagens.

VII

1.    Eis que os tempos se  mudaram para o bom mancebo.
2.    Peres percebia  o número de  novilhos  a diminuir  a cada dia, por conta dos banquetes, regados por vinhos vindos de longe e selados com sobremesas de alto preço.
3.    Às ovelhas não se reservou destino diferente e os caprinos se reduziram a número insignificante.
4.    Dava para se contar nos dedos de uma mão o que restou dos muares acercados ao velho poço, desobrigados do arado por conta da insignificância da colheita.
5.    Em contrapartida, ainda restavam amigos em número suficiente para os banquetes e festas sob quaisquer pretextos.
6.    Peres percebia, mas não levava na devida conta, que do cofre se esvaíra a maior parte do que continha em ouro e prata e seus dedos raspavam a superfície do escrínio a cada vez que a ele recorria para amoedar empregados ou propiciar empréstimos aos apaniguados.
7.    Suas videiras  emurcheceram e, em pleno tempo de sega, eram suas bagas  de número ínfimo.
8.    Eis que o número de convivas também se foi rareando, ao ponto de sumir um a um.
9.    As palavras de Jeú o visitaram e doeram-lhe no mais fundo do coração.
10.Ali estava o retrato vivo de um tempo difícil naquela sua casa, de cores pálidas e encardida, onde agora só credores tinha Peres por visitas, à cata de seus últimos haveres, a partir do romper d’alva.

VIII
1.    Ante à extrema penúria pela qual se abatera, a reação natural do pródigo herdeiro de Jeú foi buscar uma solução para aquela situação vexatória que parecia não lhe oferecer alternativa.
2.    Cabisbaixo, como um condenado que segue consciente para o último gesto, e com desprezo por todos e pela própria vida, Peres tomou o rumo do velho celeiro.
3.    As tábuas do teto arriavam ao peso do tempo e as antigas colunas, de um cinza pálido, davam a impressão de mal suportar aquela estrutura carcomida pelo rigor das  intempéries.

IX
1.    E Peres chorou pela saudade de seu pai e de suas palavras; do pai que já não mais existia, e com cuja amizade, ainda que única, poderia contar em seu momento extremo.
2.    E também sentiu pelos amigos que não mais se faziam presentes em sua vida por conta da perda de seus haveres, que não lhe permitia comprar-lhes a leviana amizade.
3.    E ali, diante das velhas paredes de madeira, Peres puxou com ira uma velha corda que pendia do teto, conforme seu pai lhe indicara em sua derradeira exortação.
4.    Com a coragem temerária dos desesperados  puxou com firmeza a corda que segurava e pressentiu o seu fim e o fim de toda a sua desdita.

X
1.    E sucedeu que sobre ele desabou uma surpresa inusitada.
2.    Peres sentiu um sabor de ressurreição, a devolver-lhe os anos que os gafanhotos comeram.
3.    Sobre ele desabou uma avalanche de dracmas e talentos, bem como  moedas de ouro e prata, jóias de todos os tipos, que lhe pareceu uma tempestade a escoimar as sombras do pesadelo que se encerrava.
4.    Era como se aquela fortuna lhe machucasse as têmporas para acordá-lo para sonhos novos e maiores.
5.    Peres sentiu-se suplantado de riquezas, desviando-se para a direita e para a esquerda e com dificuldade se manteve em pé sobre o tablado do velho celeiro.
6.    E após esse derrame de fortuna, voou sobre sua cabeça um pequeno pacote recoberto por um pedaço de fazenda de linho empoeirado.
7.    Avidamente Peres apanhou o pano e desembrulhou-o pressuroso.
8.    O conteúdo era um pergaminho onde se lia, sob o timbre do selo de Jeú:
9.    “Amado filho, a desgraça que te fez conhecer o número de amigos que tínheis, doravante  te será por lição de fogo de como é a vida e como são as pessoas. Com a bênção do teu pai, Jeú, filho de Quisran.
10.Eis que a boa nova ganhou os morros: Peres era agora mais rico ainda do que já fora, e isto deu imediato ensejo para que amigos próximos e distantes redescobrissem a rota de sua vivenda..
11.Afoitamente, postou-se uma quase  multidão à porta de sua casa. Mas ninguém veio  abrir. Peres, a duras penas, aprendera a sábia lição de seu pai, reiterada naquele póstumo pergaminho.








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