O PAI DO FILHO PRÓDIGO


Geraldo Generoso

Ele escolheu  o entardecer para partir definitivamente. O céu cinzento aspergia uma garoa fina e insistente sobre a nossa vetusta e acostumada casa. Tomando de uma corrente,  ainda o vi  prender o cão, insistente em acompanhá-lo como de costume. Conforme anunciara pela manhã, dali por diante – segundo suas próprias palavras – folgar-me-ia de  todo e qualquer cuidado para consigo. E para demonstrar firmeza nessa decisão, requereu-me a parte que lhe cabia por herança.

Estendeu a mão de forma arredia. Embora tentasse ostentar indiferença, percebi em seus olhos o ensaio de uma lágrima a custo contida.


Sem mais delongas,  apanhou   um odre e conferiu as provisões do alforje. Vestido num manto de gala, ajeitou a capa, firmou o passo e ganhou a estrada.  Ansiava ver coisas novas, novas pessoas; viver situações diferentes daquele cotidiano sem riscos que era o lar paterno de onde nunca saíra. Cansara-se daquela vida de sempre, com o relógio  a repetir as mesmas horas sem conta de uma existência ansiosa por emoções e novidades.

Em seu modo de ver, aquela decisão de atirar-se no mundo soava-lhe como uma promessa de ressurreição. Por isso ele estava apressado em tudo e  a todos deixar atrás em demanda dessa outra forma de experiência.

Livre para Voar
Enorme foi o esforço para me conter em alertá-lo sobre a temeridade daquela decisão. Ninguém  melhor que  eu,  seu pai, experimentara  essa loucura  de trocar o lar pelo mundo. Baseado em minhas razões passadas, até compreendi aquele extremo gesto.

Sim ! Porque eu próprio  já havia interpretado essa história, em seu começo, meio e fim  na própria pele:  em minha mocidade,  ainda imberbe fizera o mesmo. Também exigi, no meu tempo de moço, a parte da herança que me competia para ir em busca  do meu sonho e só encontrei pesadelos .

No momento em que meu filho optou por sair em definitivo de casa, estas rotas lembranças, vividas neste mesmo lar, pungiram-me duplamente. Dividi-me entre o sentimento antecipado da saudade dele, que ia embora, pela saudade do meu velho pai, que se fez marcada a ferro no meu peito! Só então compreendi a dimensão e a  intensidade da dor que o fiz passar quando dei-lhe um adeus que naquele momento pareceu-lhe definitivo.

O outro lado da moeda
Agora, em reprise do gesto de meu velho,  era eu quem contava as moedas que por direito cabiam ao meu filho. Rememorei naquele instante as muitas vezes em que ele de costume me pedia um níquel, à passagem dos mercadores, para comprar uma guloseima ou  um brinquedo qualquer. Mesmo tomado de profundo desgosto, insisti em fazer transparecer a fortaleza moral e espiritual que lhe devia por lição e exemplo.

Ademais, fez-se desnecessária qualquer  exortação  que confirmasse em palavras a disposição de que  minha alma haveria de acompanhá-lo até os confins do mundo:  “Ainda que ele andasse pelo vale da sombra da morte “ (Sl. 23:4), “ eu o recobriria com minhas penas (Sl 91:4).

Tampouco foi preciso lembrá-lo que “na casa de seu pai há muitas moradas” (Jo.14:2) e que a casa donde ora  saía continuaria sendo  sempre  sua.


Tempos de Ausência
Ensimesmado, os dias transcorriam entre o enfado da rotina e uma estranha apreensão. Sempre me irrompia uma mesma e insistente pergunta: - Não estará ele em “perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos entre falsos irmãos?” (II.Cor.26).

Diariamente eu me postava sobre o gradil do alpendre. Repetia religiosamente esse gesto nos momentos solitários, de oração e quietude. Sempre naquelas mesmas horas em que depunha o arado, recolhia os animais e pendurava as ferramentas.

Numa dessas tardes, ocorreu-me a nítida impressão de vê-lo ressurgindo por entre as folhagens do ipê.

No dia seguinte a essa miragem, alguns mercadores em trânsito estacionaram aqui. Veio à minha porta o mais velho entre eles pedir permissão de breve permanência, no que de pronto acedi. Por se tratar de pessoas viajadas, a conduzir não só mercadorias mas também notícias, achei por bem ir ter com eles para ouvi-lhes alguns relatos de suas muitas viagens por diferentes lugares.

Contaram-me, a propósito, que de há pouco tempo a esta parte, haviam confiado um rapaz a uma estalagem de beira de estrada. O motivo foi que esse jovem adoecera por excesso de vinho, o que o impossibilitou de prosseguir a marcha com os demais. Disseram que o tal moço dilapidara todos os haveres em folguedos, danças e licenciosidades de toda ordem à custa do mau emprego da herança paterna.

Vi pairar sobre a mente uma pesada nuvem de incerteza. Foi instantânea a associação do que ouvi com a figura de meu filho. Possivelmente seria ele, ora retido entre pessoas estranhas, alheias de si por completo, que o despediriam sem mais nem menos tão logo vencesse a paga de sua estadia.

Relembrei-me ter-lhe propiciado soma de grande vulto, representada pelo quinhão a que fazia jus por direito filial. Mas, estremeci ante a hipótese quase certa de que meu filho se encontrasse em situação difícil, relegado ao abandono como um animal inservível.

Dias depois, apareceu por aqui, de passagem, um mancebo errante. Ainda que vestido de sórdidos farrapos, sobre um corpo abatido pela fome e cansaço, suas feições traíam uma origem nobre confirmada por seus gestos.

Ofertei-lhe uma côdea de pão e de pronto ele acedeu ao convite para servir-se de nossa mesa. Foi fácil constatar a intensidade da fome que acumulara ao longo dos trechos naquela abjeta condição de andarilho.

Ante esse quadro vivo de degradação humana, tremi açoitado pela suspeita de que meu filho se encontrasse em situação semelhante ou pior. Um turbilhão de cuidados atravessou-me a alma como uma flecha de fogo. Uma avalanche de perguntas me encobriu o pensamento:

-Porventura dotei o menino do suficiente para mantê-lo à sua porção acostumada? E agora, que se entregou ao leilão dos prazeres, logrará com que sustentar-se? Como fará para dispor de comida, teto, vestimenta, calçado e remédios?

A primavera vem Surgindo
Setembro já se vestia das primeiras floradas. As árvores reverdeciam abotoando de branco os ramos das galhadas. Os campos exultavam com a volta do coquetel de perfumes da primavera. Eu repassava pela memória os seus costumes domésticos de conforto e fartura. Refazia nesse quieto cismar toda sua história. Sempre vestido do linho mais puro e imaculado.

Ele, o meu filho, que crescido de repente, continuava a ser, para mim, aquela mesma criança – frágil, pura e inocente. Aquele menino de quem a custo admiti fosse ele capaz de trocar toda a certeza do amor diário que lhe proporcionava, pelas vias cruas e incertas das ruas, onde até um copo d´água tem seu preço. Só me restava pegar a estrada, por que rumo fosse, e levar-lhe socorro e salvação. De pronto ordenei a um serviçal que encilhasse o cavalo imediatamente. Foi preciso afrontar a incerteza da jornada com a esperança maior de reencontrá-lo, fosse onde fosse. Se for essa a sua vontade – regressar ao lar que continua seu – trá-lo-ei de volta com certeza.

Ásperas travessias
Enveredei-me por trechos ermos e solitários, rompendo por escarpas íngremes ou pelos declives dos vales. Cheguei muito próximo de abismos estonteantes. Em meio à escuridão das noites, varei por serranias ermas, sob o pio das aves de mau agouro, a custo mantendo acesa a chama da esperança. Avistava, aqui e ali, casinholas recuadas do alinhamento da estrada, como que escondidas dos pouquíssimos passantes que, como eu, porventura se aventurasse por aqueles cafundós. A paisagem evocava sinais de desolação e decadência. Casebres toscos e paupérrimos pendurados nas encostas, ocultavam o aspecto lúgubre pela espessa escuridão que os envolvia. Tudo ali exalava abandono. A própria Natureza se fazia triste e, até mesmo o Sol parecia relutar em surgir com seus raios para espancar as trevas da pesada noite.

Buscando pegadas
Como intruso peregrino, não me cansava em bater àquelas estrangeiras portas. Queria e precisava encontrar ao menos um vestígio de meu filho. Vivo ou morto, em algum lugar ele deveria estar! Informo aos que me atendem que procuro por um moço forte, de porte atlético, educado e bom. Ninguém dispõe de qualquer informação.

Até que, afinal, estaco o cavalo defronte uma choupana encravada no sopé de um pequeno morro. Repito a pergunta e reitero a descrição de quem procuro.

Atende-me um ancião, que se mantém sentado, cabisbaixo à soleira de um arremedo de porta , que me diz a custo com sua voz sumida:

- Há poucos dias, passou por aqui um rapaz. Parecia muito abatido e nos pediu trabalho. Repartimos com ele o pouco da nossa mesa e, após beber água ali naquele poço que o senhor está vendo, o moço agradeceu e partiu. Lamento não poder informar o rumo que ele tomou. E prosseguiu o ancião:

- Como se tratasse de um moço bem apanhado, que até parecia ser filho de gente que pode, os de minha casa ficaram receosos de indicar a ele a única chance de emprego que conheciam. Mas como ele insistisse, acabaram por informar a esse jovem cidadão que aqui por perto há um trabalho, sim: cuidar de porcos.

E concluiu o velho após um pigarro insistente:

- A duas léguas daqui há um sítio conhecido como “Água Feia”. O proprietário estava à procura de um porcadeiro. É que o moço que se prestava a esse serviço, que não era destas bandas e não se deu bem com o frio deste inverno, que castigou as gentes e as criações, caiu doente, vindo a morrer em poucos dias após ficar enfermo.

Como esse filho de Deus não tinha parentes - e nesse assunto em vida ele nunca tocou – seu patrão o sepultou no campo santo da Freguesia.

Agradeci ao velho de rosto encovado, calva à mostra e sobrancelhas grisalhas, e depus sobre suas mãos enrugadas e calosas uma moeda. Conferiu-a, a custo, aproximando-a dos olhos gastos e abriu um sorriso na boca desdentada, proferindo esta frase final:

- Que Deus, Nosso Senhor, seja servido e seu filho seja encontrado são e salvo.

Retomando a marcha
Retomei a marcha a que me propusera, agora com um rumo aparentemente mais definido. Resisti aos temores que insistiam em me assaltar a cada passo. Dei rédeas à montaria, que parecia compartilhar da minha pressa. O caminho prosseguia com seus becos afunilados nas encostas. Avistei de longe uma esplanada erma e deserta. Precariamente diviso taperas sustentadas sobre estruturas em ruínas, com suas chaminés enegrecidas, arqueadas sob o peso dos telhados. A paisagem é paupérrima. O lugar é de completo abandono.

Ouvi ao longe as vozes de animais famintos. Porcos grunhindo quebram o silêncio da alvorada que já vem perto. Pensei gritar por seu nome. Mas, talvez, ele nem mais reconhecesse o timbre de minha voz aos primeiros chamados. Ademais, meu grito seria abafado de pronto pelo gemido dos animais em vigília. E ao chegar mais perto, assim penso comigo mesmo:

Talvez o meu filho, não suportando a humilhação e o opróbrio, haja partido à procura de um destino melhor em outra parte. Inteligente como ele é, estou certo de que concluiu que neste lugar é impossível sobreviver!

À medida que eu caminhava, lentamente, por entre entulhos que barravam a passagem, eis que divisei um vulto imóvel e pensativo assentado sobre um portão cinzento e carcomido. A manhã ainda está frouxa. Vejo um jovem que se levanta a depor lavagem sobre os cochos imundos, tentando disciplinar o apetite daqueles bichos insaciáveis. O quadro se me afigurou dantesco. Até sugere a impressão do inferno.

Aleluia ! Eis que de repente ele levantou a cabeça e perguntou em altos brados:

- Quem é? Quem está aí? Quem pode ser a estas horas? E num grito de pavor colocou-se em defensiva empunhando o seu cajado:

-Sou Eu. Seu Pai. Eis que vim como o ladrão. (Ap.16:15)

Quando ele me ouviu, ao avistar-me, seu rosto iluminou-se com os primeiros raios do sol. Desarmado, caiu por terra exclamando entre lágrimas:

- Pai! Leva-me contigo para os verdes pastos de águas mansas. Só lá sentirei refrigério em minha alma e, em tua companhia não temerei mal algum...Andei pelo vale da sombra da morte, mas o meu consolo se resumia na certeza de reencontrar-te. (Sl. 23 – versão livre)

E num longo e demorado abraço, a custo lhe respondo:

- Vamos para casa, meu filho! Lá terás a cabeça ungida com óleo e em tuas mãos o cálice transbordante. Vamos para casa, meu filho, vestir o melhor vestido, pôr nas mãos o anel de ouro e nos pés, as alparcas. Vamos comemorar, porque você estava perdido e foi achado, estava morto e reviveu. Vamos para a casa que foi sempre tua e que habitarás de ora em diante para sempre!

Um comentário:

  1. Amigo Geraldo,
    vim às lágrimas com tamanha sublimidade. O texto é profundo e esta adaptação nos dá a "certeza" de que, até quando a esperança se esvai nos momentos de penúria interior, o PAI está presente e mesmo sem uma simples súplica de nossa parte, ele nos resgata com seu amor incondicional, dos "vales das sombras da morte". M a r a v i l h o s o!!
    Grande beijo

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