Ana, cuja idade
já estava quase a balzaquiar, cedo na vida se preparou para a
própria independência financeira. Sacrificando a magra mesada, contando com o
apoio de amigos e parentes, a custo conseguiu montar um salão de beleza.
Certa tarde, com a cabeça cheia
pelos relatos de tantos dramas e fofocas de seu polivalente estabelecimento de
estética feminina, autêntico receptáculo de futilidades do sexo frágil, o
sábado transcorrera idêntico aos demais no calendário da cidade pequena.
Cansada, sem ânimo sequer para uma volta pela praça, pois tanto a volta
quanto a praça seriam as mesmas de
sempre, foi que resolveu quebrar a rotina. Ipaussu, passara a ser para ela
mesmice de sempre: muito rabo-de-saia e homens cada vez em menor número. A
disputa por um namorado era acirrada entre as casadoiras. A concorrência
aguerrida nesse mister, na maioria das vezes, acontecia de forma desleal.
Entrou para o banho sob uma ducha
fria. Refez o corpo e a alma. Enquanto rebolava sob o chuveiro em ponto morto,
alegremente cantarolava uma canção de Vando, entremeada com outra de Benito.
Assim relaxada, acendeu-lhe uma ideia. Antes que a água apagasse aquele lampejo
de eureca, tomou da felpuda toalha, enxugou-se
rapidamente e conferiu o corpo no
espelho .
O plano – ir para Botucatu passar o
fim de semana que, a bem da verdade, já estava no meio do fim, já que o sábado já era. Ficara lá em seu salão de
beleza, engastado na rotina tagarela de sempre.
Apressou-se para a Rodoviária .
Pagou pela passagem e tomou o ônibus para o ponto de destino. Em Botucatu - pensou ela – tudo será outro astral: -
amigos e amigas, paisagem urbana diferente, gente diferente, mais opções de
lazer...
Em lá chegando, foi muito bem recebida pela tia Mafalda,
viúva, mãe de duas filhas, Selma e Cristina. Cama impecavelmente limpa, tudo em
ordem, mas o sono não chegava. Lia uma revista para entreter a rebelde insônia
e, naquela solidão, foi ao telefone e ligou para um amigo, o Luciano.
Era um jovem de 25 anos, como Ana,
muito bom e divertido, apesar de um pouco excêntrico. Ao chamado, respondeu de
pronto do outro lado da linha, conhecendo-lhe a voz:
- Oi, Ana ! Você não morre mais !
Estava mesmo pensando em você agora ( álibi antigo, mas não ultrapassado). Que
tal um programa para amanhã ?
- Ah, sim ! Posso levar minhas duas
primas? Eu ainda não falei com elas porque ainda não chegaram da rua, mas
gostaria que elas fossem.
- Claro, querida ! Leve quem você quiser ! É na Chácara de meu pai,
numa casa de campo. Eu passo aí apanhá-las na sua tia .
- A que horas vai passar, Luciano ?
- Às oito da manhã ! Horário
britânico !
- Ok ! Eu o espero. Um beijão.
- Outro maior para você ! Tchau,
Ana. Até amanhã cedo!
Amanheceu...Tia Mafalda pôs a mesa do café de costume: leite,
chá, café, bolacha, mel, geléia, mamão
papaia, pão francês, pão italiano, brioches, manteiga etc. Mas Ana só se serviu
de uma xícara de cafezinho preto para quebrar o jejum.
Afinal, pensava a hóspede, vou para
uma casa de campo. Lá encontrarei tudo com autêntico sabor de natureza: mamão, frutas do pomar, leite ordenhado na
hora, além de outros luxos para o paladar, sem pensar no fundo musical dos
pássaros a cantar e da atmosfera verde do campo, que transmite tanta paz e
alegria .
Eis que surge o primeiro imprevisto:
Ana e as suas duas primas, Selma e Cristina,
se postam no portão da rua à espera de
Luciano a partir das 8 horas, como combinado. Passam vários carros. Nenhum é o
de Luciano. O relógio encosta o ponteiro nas nove e meia. Nada do Luciano.
- Ah, Ana! Mas isto é nos fazer de
tonta ! Ficar aqui esperando a vontade dele ? Até quando ? – observa indignada
a prima Cristina.
De repente, surge ele, sorridente, a
pé, debulhando vitalidade, num disfarce perfeito da ressaca da véspera.
- Oi Ana ! Tudo pronto ? Demorei ?
Vamos então ?
- Oi, Luciano ! Tudo certo ! Estas
são minhas primas. Esta é
Selma, aquela é a Cris. Este é o Luciano, um velho amigo de sempre.
-Muito prazer ! – disseram ambas a uma só voz,
apertando a mão do recém-chegado.
- Luciano – pergunta Ana – mas cadê
o carro ?
- Oh, Aninha. Ficou na garagem. Nada
melhor que uma caminhada. Faz bem para o corpo e para a mente. São apenas oito
quilômetros de estrada plana e florida, cheia de passarinhos a cada passo.
As primas, Selma e Cris, recusaram de pronto a idéia,
mas Ana acabou aceitando o convite naquelas condições.
Encetada a marcha, com muitas
topadas e nascentes calos, antes já do
meio do caminho aquilo pareceu a Ana uma viacrucis .
Com muito custo, suor e cansaço,
além de xingamentos mentais inaudíveis, foram dar ao que Luciano dizia ser a sua casa de campo.
Aliás, uma bela construção, de
majestosas árvores ao redor e revelando o zelo dos seus proprietários. Já
beirava as 11 horas da manhã. O estômago de Ana, contudo, marcava meio dia ou
mais. Foi por isso que ela perguntou:
- O quê faremos para o almoço,
Luciano ?
Surpresa! – respondeu ele.
Surpresa para Ana seria um
desaforado salmão defumado, ou para ser mais nacional, um camarão ao molho,
acompanhado de uma bebida condizente com o prato e com o clima de verão escaldante
que os fazia transpirar em bicas .
- Milho verde,Ana. Natureza ! Gosto,
cheiro e substância de natureza! Vamos por aqui. O milharal fica logo ali.
Deixe-me respirar fundo para sentir o aroma deste ar puro e imaculado.
Engano nas contas ou eufemismo na
expressão : o milharal ficava a 3 quilômetros. Três para ir, três para voltar. Lá colheram uma braçada de espigas,
a maioria pálidas e mirradas, como
aquelas de mau presságio no sonho do
José bíblico. A fome já transpassara
Ana, acostumada a uma vida regular em suas refeições. Trouxeram o
milho para assar, segundo a receita de
Luciano, no fogão à lenha por acender.
A custo acesa a lareira da varanda
sul, o cheiro de milho assado recendeu como um aroma que somente a fome é capaz
de torná-lo num incenso dos deuses.
Comeram desabusadamente.
Após o farto repasto, tomaram a
estrada de volta para a cidade. À entrada da vivenda que ora deixavam para
trás, saía um carreador alternativo, ao que Ana perguntou a Luciano aonde iria
dar aquele caminho que lhe parecia abandonado. A resposta veio com uma
proposta:
- Ana, bem ali, pra lá daquele
barranco, há uma chapada onde comumente pousam discos voadores. Que tal irmos
até lá e tomar uma carona para Marte. Os etês são meus velhos conhecidos e a
viagem será maravilhosa.
-Escute aqui, Lu ! – disse Ana
esticando o indicador de modo enérgico -
Até que seria muito bom ! Mas, veja bem: eu só aceito descer essa biboca
e esperar pela nave que vai a Marte no primeiro horário se você me garantir uma
coisa. Uma coisinha só, Luciano !
- O que é, meu anjo ? Pode falar ! –
disse Luciano olhando-a bem nos olhos.
- Eu só aceito essa viagem se você
me garantir, aqui e agora, que nesse tal
de planeta Marte, ou no raio que o parta, não se planta, não se colhe nem se importa milho, nem verde
nem seco nem em conservas – concluiu a convidada.
Luciano entendeu o recado num
silêncio de assentimento. Tomaram o rumo da cidade. Ana foi reconhecendo pelo tato, no trajeto de regresso, as mesmas pedras pontiagudas da ida. Assim,
melhor conhecendo o terreno, desviava-se, quando possível , dos escolhos do
caminho. Eis que surge de repente uma camioneta, com toldo na carroceria, e
sobre este uma corneta de alto-falante.
Presto, o motorista parou, levando
as mãos ao chapéu em gesto de cortesia. Ofereceu-lhes gentilmente uma carona.
Ana sentiu-se leve e descontraída.
Tentava zerar a mente, num ensaio zen de contemplação às pradarias calmas que
se iam espichando para trás, enquanto o veiculo deslizava aos solavancos por
aquela estrada de poucos passantes. A cidade apontou lá longe e em poucos
minutos ingressaram no perímetro urbano.
De repente ela ouve um ruído. O
homem ligara o alto-falante. Escutou pelo bocal empoeirado uma tosse para
alívio do pigarro. Quando ele soltou a mensagem, Ana saltou do carro ainda em
movimento .
Preferiu concluir à pé sua chegada até a casa de tia Mafalda, no extremo da íngreme
ladeira da tradicional Botucatu. Foi porque, em sílabas bem soletradas, o
motorista locutor assim anunciou alto e
bom som:
PA-MO-NHAS ! PA-MO-NHAS ! PA-MO-NHAS !
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