Nada há de mais relaxante do que pendurar as tarefas e compromissos para o dia seguinte e entregar-se a uma caminhada pelas tardezinhas de Ipaussu, quase sempre insufladas de sua suave brisa costumeira.
Por conta da condição de velho morador nesta cidade, fundada e mantida ao feitio de uma grande família, a caminhada é interrompida a cada passo. Sempre nos deparamos pelo trajeto com algum velho amigo ou parente, um ex-vizinho ou algum aposentado cioso em contar um caso qualquer.
Numa destas tardes, em que o Sol já se espreguiçava no horizonte e os vários caminhões e ônibus já haviam entregue os trabalhadores volantes dos canaviais das redondezas, saí sem rumo certo num passeio pelas ruas, todas elas minhas velhas conhecidas.
De há muito não sentia sob os pés aquele chão por onde tantas vezes caminhava descalço, como pequeno pedestre à procura de nada.
Já estava a quase um quarteirão de minha casa, quando uma voz enlatada, saída de trás de um pé de chorão, pronunciou meu nome. Acudi ao timbre da voz que me soou familiarmente saudosa, de pronto evocando a remota infância.
- Gerardinho, vamos chegar um pouco !
Era Bodó, amigo e conhecido de longa data. Marcava-o um bom humor constante. Seus olhos azuis acinzentados, a pele branca e o chapéu preto de aba discreta, propositadamente entortada, era o mesmo dos meus tempos de moleque travesso.
Ali, defronte a varanda, por sob as folhas do pé de chorão, ele descansava as gastas muletas sobre a amurada da área. Solteiro, vivia sob os cuidados da irmã, Dona Cidinha, a qual passou a ser para o irmão deficiente a mãe que se fora há longos anos, exatamente num tempo em que mãe, sem dúvida, ter feito tamanha falta.
Entrei pelo portão semiaberto. Bodó, por força de sua condição, não se levantou para me saudar. Seus olhos é que se levantaram a fuzilar uma alegria por rever-me ali. Por certo ele teria como de hábito, um “causo” engatilhado na memória para disparar assim que se cumprissem as formalidades de anfitrião.
Não deu outra. Apertando as minhas mãos com suas mãos nodosas, foi sacando de uma história da boca de escassos dentes, abundante de sorrisos:
- Gerardinho, você nunca ouviu falar no velório do Aparício? Aquele gordão que morreu lá na Fazenda São Francisco ? –perguntou-me com entusiasmo.
- Não! Nunca ouvi esse caso, Bodó. Não deve ser do meu tempo. Mas, afinal, o que aconteceu no velório desse tal Aparício?- perguntei, dando-lhe corda à memória.
- Prá dizer bem a verdade, eu também não me lembro do seu Aparício. Mas o finado pai, que foi muito amigo dele – caçaram, pescaram e trabalharam juntos por muitos anos - sempre repetia esse “causo” que ficou na história lá do povo de Timburi.
- A alma dele apareceu para alguém, Bodó? Isso acontecia muito naquele tempo, né?- perguntei para dar mais embalo à conversa.
- Ah, Gerardinho! Vou lhe contar o “causo”,sem tirar nem pôr, do jeitinho que o finado pai contava . E você sabe que o pai não era homem de mentir. Ele ficou muito chocado quando mal tinha chegado da roça, nem mesmo tinha se lavado, apareceu o Alfredinho Pinto, ainda molecão, gritando casa adentro: “Nhô João, o pai morreu! Oi, Nhô João, o pai morreu, homem!
- O Alfredinho eu cheguei a conhecer, sim. Mas quando o conheci já era homem feito, casado, pai de vários filhos – juntei, de forma a partilhar melhor a história!
- Então! O Alfredinho veio alarmado com a notícia, como se tivesse ido pedir um socorro para o meu pai. Ele cortou a colônia inteira, nossa casa ficava bem na ponta, e ainda lembro das palavras dele: “Nhô João, o pai morreu de repente! Acabou de arrancar um pé de mandioca no quintal, no momento que estava batendo a terra para replantar a rama caiu duro. Não deu nem um grito!”.
Daí, Gerardinho, o pai saiu na mesma hora para arrumar o defunto Aparício. Devido ao tamanho, o corpo do danado não coube na mesa, como era costume. Tem gente que até hoje – e você sabe disso – sempre ralha com a criança quando ela sobe na mesa. É que mesa, naquele tempo tinha também a rara e indesejada serventia de bandeja de velório.
- Por que não puseram o cadáver numa cama, Bodó? Com certeza na cama ele caberia- atalhei, tentando fazer com que o narrador melhor temperasse a história que tomara de herança do velho e saudoso João Messias, seu pai.
- Gerardinho, isso seria uma loucura naquele tempo. Ninguém pensava na morte. Quando ela acontecia é que se dava por fé que a danada existia. Colocar defunto em cama era o suficiente para ter que jogar a cama fora. Ninguém mais queria dormir nela.
Então, o finado pai, que sempre foi um homem decidido, resolveu o problema. Foi até a bica d’água e arrancou a tábua de bater roupa, que ficava perto de uma bica feita de taquara e jogou o baita sobre ela, ajudado, é claro, por outros amigos que também vieram para velar o corpo do infeliz defunto Aparício.
- Mas, Bodó, essa tábua de bater roupa ficou escorada sobre alguma coisa ou ficou no chão mesmo? –perguntei curioso visualizando aquela operação esquisita.
- Não, o pai tomou de dois cavaletes e montou uma mesa para o velório. Forrou com um lençol branco e jogou o corpo gordalhão sobre a tábua. Mas aí houve um problema. Precisou amarrar os pés e as mãos para ficarem acomodados sobre aquela prancha . - Explicou Bodó gesticulando.
- Dona Frauzina, a viúva –prosseguiu Bodó- tinha um saco de roupas velhas guardado num baú. Eram retalhos para remendar ou fazer colchas. Meu finado pai abriu aquela malona, cheirando a mofo, e dela retirou dois longos trapos, escolhidos na cor branca.
Com um deles amarrou as mãos e com o outro atou os pés do falecido. Com a coragem que sempre demonstrou, meu velho pai ajeitou tudo. Veio o Basílio Benzedor puxar o terço e todos rezaram com devoção.
Terminada a reza, meu pai se ajeitou como pôde, já muito cansado, num canto da sala. Todas as crianças, acompanhadas das mães, também se deixaram vencer pelo sono. Alguns adultos faziam o mesmo.
Segundo os antigos ensinavam, o ato de guardamento (explicou Bodó franzindo o cenho) era feito para evitar que o Coisa-Ruim roubasse o corpo. Por essa razão o pai insistia em se manter acordado, a custa do café forte e do pito bem aceso. Quando ele começava a cochilar, lavava o rosto, se sacudia e continuava de sentinela.Não tardou o galo cantar seguidamente.
- Aquele corpo grande ali – prosseguiu Bodó em seu relato- jazia exposto de mãos e pés atados e, tudo indicava, estava a estufar-se cada vez mais. Ainda disse o narrador que “quando uma pessoa foi muito boa em vida ela ri depois de morta quando sua alma se encontra com os anjos no céu. E não é que o seu Aparício sorriu para o meu pai?
Mas o pai fez de conta que não viu nada para não assustar aos demais. O velho estava arrebentado de canseira do dia corrido na carpa de café. Dá para imaginar o quanto de sono ele estava enfrentando, já que trabalhara das seis da manhã às seis da tarde.
- Bodó, mas os outros homens, colegas do seu João, também cansados pelo trabalho duro de um dia todo, certamente chegaram a dormir, não foi?
- Home, alguns chegaram até a roncar em sono solto. Quando isso acontecia o finado pai chegava no dorminhoco e cutucava o ombro do cara que às vezes chegava a roncar em plena sala do guardamento. Com um valente cutucão de meu pai o bicho dava um pulo, mas dali a pouco estava dormindo de novo.
Para completar, estava também presente nessa ocasião a dona Luzia Barbuda. Ela roncava mais do que uma porca. Mas o pai não via jeito de cutucar a danada da “véia”. Foi um Deus nos acuda. Tinha alguns moleques que não aguentaram e desataram em gargalhadas. Precisou o meu pai ralhar no duro com eles – conclui Bodó.
- 0 bicho moleque, já naquele tempo, fazia das suas travessuras. Ficava uma situação desagradável com o morto ali e a criançada naquela zoeira.
Deixei claro estar acompanhando o caso de Bodó com a máxima atenção. .
- Mas isto não foi nada, Gerardinho, perto do que aconteceu. De repente o defunto saltou da tábua como um boneco de mola. Suspendeu e abaixou a cabeça sobre as pernas. Gerardinho, só não caiu daquele jirau mortuário porque o meu pai, na época muito ligeiro, segurou o defunto pela camisa, à altura do colarinho, sacudindo o infeliz e gritando: “Compadre Aparício, ô compadre Aparício!”.
- Mas não vai dizer que o homem estava vivo, Bodó? -perguntei ansioso pela explicação.
- Nada disso, rapaz! A tala do pano das pernas, que o pai havia feito com trapos velhos, talvez até mesmo podres, arrebentou. No que o Aparício abriu as pernas o resto do corpo veio junto se dobrando porque o cavalete da frente era menor do que o detrás – disse ele certo de sua explicação.
- Imagino que aconteceu um pânico geral. Não ficou ninguém para ajudar o seu João, seu pai? –perguntei.
- Que nada! O pai ficou sozinho ali, segurando o baita. Cada um se escafedeu como pôde. Crianças e mulheres gritando, era só gente se apinchando pela escada de madeira da sala, outros levando portas e janelas no peito e se enfiando pelos arranha-gatos na quiçaça. O Joaquim Santana correu direto para a casa dele numa destalada só e mandou o vizinho ir avisar o administrador enquanto ele se lavava por ter se borrado nas calças. Teve gente que foi até pisoteada, moço. Quando o pai deu por fé que o Aparício estava mesmo morto, chamou o pessoal de volta, mas nem a viúva queria chegar para perto da casa. Na correria quebraram o lampião e o pai ficou no escuro segurando o Aparício.. Só mais de uma hora depois chegou o seu Antonio Nortista, fiscal, e o seu Orlando Furtado, o administrador da Fazenda São Francisco. Arrumaram todos os papéis e enterraram o Aparício. Desde então nunca mais ele assustou ninguém.
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