“Só a
morte está isenta da dificuldade”. - Joseph Campbel.
Dizia Bocage, em seus versos de um tempo mais
reflexivo de sua atribulada existência: “
...O sentido da vida e o seu arcano / É a imensa aspiração de ser divino/ No
supremo prazer de ser humano” .
Se fizermos uma análise na vida de uma
pessoa sobre o que ela tem de humano e transcendente ao mesmo tempo,
constata-se que tal indivíduo – homem ou mulher – tem sua estabilidade
psicológica na proporção dos mitos que cultiva.
Eliminar o mito da vida de uma
pessoa é alijá-la de sua própria essência e manietar-lhe a alma no que tem de
fundamental enquanto ser pensante e sensível.
O fio condutor da existência é o
fio mitológico. Entenda-se que o termo aqui não é empregado no sentido negativo
que à primeira vista pode sugerir.
Erasmo de Roterdan, em seu livro do
Renascimento, Elogio à Loucura, a certa altura nos conduz a imaginar um
potentado em posições comuns, só realizadas em oculto, a pretexto de expor a verdade nua e crua sobre
quem realmente é quem.
Mas nós, humanos, não nos contentamos com a realidade
discutível do que se é, mas, como seres pensantes e sentintes, queremos
ver exatamente o que criamos ou criaram para nós no país do imaginário.
Como
seria triste o cientista que tomando de um piano reduzisse-o a prótons,
elétrons, nêutrons, fótons e outras novidades da física quântica, numa apreciação sem o
menor sentido para um músico ou ao comum da maioria de nós, apreciadores da
música que esse piano “ desmascarado” faz verter para nosso deleite.
A importância das ciências humanas e sociais,
onde nada é exato, revela-se a mais fascinante, porque o Universo tem duas
lógicas diametralmente opostas : uma,
exata, na frieza dos números por si mesma, e outra, no calor do que vemos,
sentimos e degustamos, por tudo quanto rimos e choramos e pelo que só assim nos sentimos realmente vivos.
Nas sociedades primitivas, passando pelo
esplendor da Grécia com seu séquito formidável de filósofos ou em pleno
terceiro milênio com sua tecnologia galopante, o mito é a mola que nos faz
suportar o mundo.
O mito nos faz sair de
nosso acanhamento fatalista para os voos da liberdade e do sonho que nos retira
da mesmice do ser. O Papa João Paulo II, por exemplo, já se firmou como um
mito.
Esse homem realmente foi uma lenda viva e quanto bem ele nos fez, não
só aos cristãos, mas a um mundo a que ele levou
cada um de nós deixar de olhar para o próprio umbigo e, aos chefes de
Estado puxou as orelhas para que descortinassem um mundo de equilíbrio e paz.
O
que seria, senão o mito, para explicar os avanços desse pontífice? Sem
exércitos, sem qualquer poder de barganha, sem a mínima estrutura em termos
potenciais da nação que dirigia, - o Vaticano – que não chega a um alqueire de
área, ele revolucionou o mundo inteiro com suas propostas e o mundo parou para
ouvi-lo em vida e depois pranteá-lo na
morte.
Se o mundo a tudo seguiu e obedeceu, não vem ao caso. Mas ficou evidente o quanto ele marcou presença
no concerto das Nações de todo o globo terrestre.
Agora, a humanidade passa,
sim, por uma crise de identidade, pela perda de um referencial que,
justificadamente, a própria humanidade obrigou-se a reconhecer como o seu mito
maior, e talvez único, neste fim e início de século e milênio.
Os católicos, a
quem ele falava mais de perto, apressam-se em canonizá-lo de imediato, passando
até, se fosse possível, por sobre os
cânones da própria Igreja.
Há um lugar vazio, ou pior que isso, um trono vazio
que clama para nossa imaginação em compensar perda tão significativa com a memória
devotada ao Papa Peregrino, fazendo-o o nosso santo mais novo, e até mais
próximo do que estava – no Vaticano ou em viagens pelo mundo.
Será salutar que
outro mito surja em breve, o que não é fácil, até porque todo mito- por sua
própria condição que nos exige fidelidade de consciência, é sempre único e ao
qual queremos insubstituível.
-* 0 autor é escritor e jornalista.
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