TESTEMUNHO DE UMA COBRA

REQUISIÇÃO DOCUMENTADA
Geraldo Peres Generoso

A
quele janeiro se revelou  pródigo em chuvas. Somadas à fertilidade da terra ipauçuense, constituída de solo de origem vulcânica, da decomposição de rochas magmáticas, os campos se abriram em sorrisos verdes na promessa de uma safra recorde.

            Assim conjeturava Vieira, o vice-prefeito da cidade,  a folgar por quanto a natureza havia sido dadivosa daquele lugar, onde ele  ocupava o segundo cargo mais importante do município. Por se tratar de pessoa que entrou muito cedo para a vida pública, como vereador mais votado na eleição em que se candidatou pela primeira vez,  não lhe eram estranhas as mazelas que cerceiam a vida de qualquer político.

Até  por uma defesa natural contra o estresse e o desencanto para com a vida pública, era de seu hábito, a adoção habitual de  uma máxima de Dale Carnegie “sempre tirar o melhor resultado das piores condições”. Também pela consciência do desgaste no trato  de questões delicadas com a  população, compreensivelmente exigente, Vieira  fez por manter  seu horizonte mental no otimismo, mesmo quando as coisas nem sempre fossem as melhores.

Neste belo dia, pois, Vieira se encontrava nesse estado de espírito. A chuva borrifava,  pela janela de seu gabinete,  grossas cordas de água, às vezes retorcidas pelo vento costumeiro, a ensejar  um  sereno estado de meditação. Não  conteve, ante esse mergulho interior, naquela manhã ainda quieta do borbulho do paço municipal “Eudóxio da Silva Mattos, esta  exclamação: “Como é bela a Natureza”.

No seu gabinete, por costume e convicção política mantinha, literalmente, a porta sempre aberta.  Quase na forma de uma oração, Vieira se abastecia, naqueles primeiros momentos, das energias necessárias para mais uma jornada de trabalho. 
            Aquele clima, em estado de alma contemplativo, do bom vice-prefeito, de repente quebrou-se por completo.  Um popular, seu presumível eleitor, entrou com tudo e postou-se à sua frente. Segurava, longe do corpo, como em aparente precaução, um saco de estopa,  a ocultar um conteúdo ignorado.
            Foi tão repentina a invasão,  que Vieira não teve tempo a dar aos neurônios para sequer formular uma hipótese sobre o que acontecia.
            - Vieira! Vieira! – gritava o recém-chegado. Não agüento mais o mataréu lá no meu bairro. . O mato está de fora a fora na minha vila. A gente reclama para fulano, diz que é com beltrano, o beltrano passa a bucha para o cicrano ...e assim vai! Pra você não duvidar do estado lastimável em que está a minha rua, com o mato cobrindo tudo, olha aqui! Veja, por favor, se estou mentindo! Veja aqui! – disse o munícipe. Num ímpeto incontrolado  abriu o saco pelo qual fez vazar uma enorme cobra cascavel. No ato de a serpente  desenrolar-se pela queda,  Vieira teve a  impressão de que   estivesse viva.


            Já refeito do imprevisto, ajuntou em tom ponderado ao reclamante:
            - Fique tranqüilo, seu Chico. A gente faz o que pode, mas essa chuvarada das últimas semanas, como você deve saber,  complicou todos os serviços urbanos.
- Por favor,  manda mesmo  capinar aqueles terrenos vadios lá da minha vila , senão da próxima vez vou pegar uma sucuri a laço e solto  aqui na prefeitura...


- Você aqui é sempre bem vindo, Chicão. Quando precisar, apareça. Você é mesmo um homem valente. Do tipo que mata a cobra e mostra a cobra morta, porque “matar a cobra e mostrar o pau” não é prova suficiente. 

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