E VIVA O VERDÃO




Não é possível! É o cúmulo! Olha lá o Hilário! Pelado pela rua – disse o dono da Cantina Monte Castelo, bem no coração de Florópolis.

Todos o conheciam na pequena cidade. Tido como anormalmente alegre, nos últimos dias apresentava uma conduta diferente da habitual.

 Um pouco sério e menos comunicativo. Lá estava ele na Praça Dr.  Raphael de Souza, nu em pelo, desfilando pela rua principal. Dispensava breve atenção às vitrines com quem disputava a curiosidade dos transeuntes e motoristas que passavam ali por aquela via central.

Ao expresso espanto do proprietário da cantina juntaram-se outros comentários e Hilário virou o eixo polêmico de uma questão inédita. Algumas pessoas riam. 

Uma senhora robusta baixou levemente o olhar em direção ao nada, mas seu olhos não acompanharam tal intenção. Uma garota olhou sobressaltada, como se conferisse não se tratar de uma miragem.

Pessoas se juntavam em pequenas rodas a discutir sobre aquela inusitada cena. Hilário realmente excedera na dose. Abilhoado de nascença, a anormalidade até então não lhe granjeara  nenhuma notoriedade. Consideravam-no um louco manso.

Mas agora não, pois lá estava ele de forma exótica, totalmente à vontade, circulando pela área central da pequena urbe e polarizando as discussões.

Passou pela frente da Nossa Caixa, atravessou a rua e alcançou o Bar Língua Preta. Olhou para o chão à procura de um lugar para deitar-se. Olhava indiferente para os lados. Seus olhos, meio achinesados, não tinham um ponto de referência definido. Nem um pouco se importava  com as pessoas que o estavam vendo ou fingindo não vê-lo.

Calçava apenas um par de chinelos vão de dedo, sendo um dos pés na cor verde  e  o outro, na cor amarela. Ali se postou na lateral esquerda da praça, próximo a uma lixeira de concreto.
Ali mesmo deitou-se alheio a tudo e a todos.

 Talvez apreciasse aquele ponto porque era um funil por onde escoava o maior número de transeuntes.. Mesmo antes de aderir ao que podemos chamar naturismo solitário, era ali o seu ponto predileto de parada.

- O que faz a Polícia? Onde estão as autoridades? Cadê o prefeito, o delegado que não vêem essa pouca vergonha em plena praça? Além disso o rapaz é superdotado, mesmo com a ferramenta em repouso – pergunta em alto tom de voz Anselmo Santos, um octogenário que dizia nunca ter visto tal cena, de alguém pelado sair assim pelas ruas sem mais nem menos.

- Ei, seu Anselmo, isso é um problema sério. Esse Hilário não tem jeito mesmo. Mas, no fundo, ele está se aproveitando da própria loucura para abusar do povo, principalmente aqui nesta praça central da cidade. Olhe lá uma mulher vindo para cá...coitada...E a polícia não pode fazer nada. Ele é inimputável – emenda Tião Alves, funcionário da prefeitura.

- Um puto! Um puto! Isso é que ele é –conclui Anselmo.

De fronte a lixeira havia uma loja de confecções. O dono veio correndo com um calção na mão. Parou diante de Hilário. Este o olhou curiosamente mas sem muito interesse.
O lojista estende-lhe  o calção para que o apanhe. Hilário levanta-se, apoiando a mão nos ombros de seu benfeitor enquanto enfia as pernas pela peça para vesti-la.

Confere como assentou-lhe o tecido sobre o corpo e sorri em aprovação agradecida. Incontinenti partiu para casa e saiu de cena. Mas não por muito tempo. 

O assunto sequer teve o tempo de esfriar nos interlocutores da praça. Refazendo o mesmo trajeto de meia hora antes, Hilário volta a desfilar novamente nas mesmas condições pelas quais ganhara um calção. Completamente nu, com seus chinelos vãos de dedo bem brasileiros (verde um pé, amarelo outro).

            Mas agora ele contorna e dobra à direita e caminha meio quarteirão além da  praça. Um despachante interrompe o serviço na máquina de escrever, sobressaltado ao vê-lo passar com a maior naturalidade por sua porta vestindo apenas aquele par de chinelo gasto.

O folgado Hilário agora se posta diante de uma loja de roupas,  farta de portas,  sem  qualquer constrangimento. Ato contínuo deita-se na calçada para ver a vida passar. Defronte há um açougue. Dona Rosania , proprietária daquela loja, chama por Laércio, o açougueiro:

- Laércio, você poderia dar uma chegadinha aqui, por favor?
De pronto o açougueiro vem atendê-la mas, na pressa, traz na mão direita o facão com que estava cortando toicinho. As pessoas à volta ficam tensas e a impressão que o quadro sugere dispensa detalhações  específicas.

Aquela protuberância entre as pernas de Hilário poderia emprestar ao objeto cortante uma inédita serventia. Mas o açougueiro passa pelo nudista sem dar-lhe atenção e vai direto para saber o que deseja dona Rosania, a vizinha  dona da loja.

       Embora fosse a primeira vez que via Hilário destrajado, ultrajando o pudor público por falta de poder público, o açougueiro passou direto e postou o ouvido bem perto de Rosania,  repetindo gestos de cabeça, afirmando entender o que ela lhe pedia em voz inaudível para a platéia improvisada que o desnudo Hilário conseguira reunir em segundo tempo. 

                                 - Pois não, dona Rosania – disse o jovem  Laércio, ao mesmo tempo, o sem-miolos balançava despreocupado, aliviado de qualquer vestimenta, os pés em folgada ginástica dos artelhos 
.     
            Por conta dessa movimentação, seu objeto de vergonha ora reclinava para a esquerda, ora para a direita. Laércio depôs o facão sobre o balcão da loja e foi para o lado de Hilário dizendo-lhe: “Vista  este calção  vermelho. Veja como ele é bonito. Vamos ver, Hilário, se ele serve para você. Vamos, experimente. Se servir, você pode vestir e ficar com ele para você jogar bola. 

            Dona Rosania permanecia na calçada, agora com mais pessoas presentes por volta.                                                                             

  Hilário esboça  um sorriso espichando ainda mais os olhos achinesados, engastados no rosto comprido,  magro, com uma franja sobre a testa, e diz para o açougueiro:
- Ei, Laércio! Esse calção é igualzinho  o que eu ganhei do seu Saliba.

            Vestiu o calção e foi-se rua afora sem mais palavras. Pelo caminho foi conferindo a elasticidade do pano, abrindo-o  à cintura e experimentando a resistência da peça.

            Ganhou o rumo da estação ferroviária. Dali a pouco regressou trajando, novamente, apenas os chinelos inseparáveis, gastos pela dedicação de seu usuário.

            De novo estava Hilário na praça , em passos miúdos, como uma vitrine ambulante, com furúnculos sobre as nádegas brancas, ainda não acostumadas a proezas naturistas que ele iniciara  sem mais nem porquê.

           Desceu pela rua Luiz Coelho e estacou diante de outra loja do mesmo ramo da qual descolara o último calção. O ritual se repetiu. 

       Deitou-se no gramado próximo a um  ponto de táxi  com o indicador viril apontado para cima e ali permaneceu. 
     
     Seu Jorge Jubran, o proprietário, de origem árabe e nos seus setenta e poucos anos, foi ao seu encalço e ofereceu-lhe um calção. Agora já era o terceiro. O comerciante fez-se de zangado para convencê-lo a vestir-se:

- Vista isto já, seu moleque! Que coisa mais feia – disse-lhe o árabe em dissimulada indignação.


- Ah, seu “Jóige”, eu quero um calção verde. Vermelho já tenho dois. Afinal, eu sou palmeirense. O senhor não sabe?

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