O PRINCÍPIO DE TUDO

Nota: Este é um trabalho literário que está em curso. O título, provisório, é "O último leproso", que remonta ao tempo de Jesus na Palestina. Por ora, mudei o título para "GRATIDÃO TARDIA". Acho muito interessante os amigos internautas participarem desse processo, praticamente do parto do nascimento de uma orbra literária, onde até poderão influir, se o desejarem e cujo concurso será muito bem aceito de minha parte. Este é o primeiro capítulo do livro. E vocês podem ajudar, não só elogiando - o que muito me alegra, mas também criticando - no que muito me ajudam. Grato, Geraldo Generoso - fevereiro de 2012


* * *

I - O princípio de tudo

Nasci e vivi os dias de minha infância em Betânia. Vim ao mundo num lar de prole numerosa, sendo eu o mais velho entre os demais. Ao todo,   nove irmãos. Recebi o nome de Naul e, como era costume entre os daquele tempo, quando adulto, fiquei conhecido como Naul de Betânia.

Nosso universo familiar orbitava em torno de nossa mãe, Tamar, por conta das viagens de papai, Eliseu, rumo às cidades e rincões afastados, em sua condição de mercador. Era um homem de fino trato, de boa prosa e sempre mantinha engatilhado um caso para nos contar sobre suas viagens.

A respeito de suas constantes despedidas, em uma delas preencheu uma rota até os confins da Babilônia.  Dele não posso dizer, por mim e por meus irmãos, que o considerássemos um pai ausente.

Seu regresso era sempre festejado por toda a família. Lembro-me, como se fosse agora, de suas chegadas com a  alimária abarrotada de víveres para nossa casa e presentes para mamãe e para nós, seus filhos.

A cada vez que ele partia, cumulava-nos  de bênçãos, conselhos e avisos. Nós o fitávamos em nossa saudade antecipada, até o dobrar da primeira curva em que ele e seus servos desapareciam de nossos olhos.

Desde antes mesmo de casar-se com minha mãe, seguindo literalmente o passo de seus ancestrais, mantinha a moradia de seus rastros em estradas as mais diversas.  Ora singrando por vales, onde os rochedos ecoavam o ruído dos cascos de seus camelos, o rugir das feras ou o vozerio de seus camaradas; ora por serras íngremes, a prorromper  madrugadas frias em demanda da rotina dos mercados, sempre povoados e concorridos em busca de suas mercadorias.

Ainda assim, a cada vez que papai encilhava a sua montaria predileta, uma mula  ruana que o entendia nas palavras e gestos, mamãe se apossava do lenço para aparar as espontâneas lágrimas no seu rosto bonito. À medida que crescíamos, nós, os meninos, aprendíamos a conter o pranto, distraindo-nos de alguma sorte e procurando entreter mamãe com perguntas e palavras que derivassem aquela emoção, tão costumeira quanto renovada, a cada vez que papai tomava o rumo de seu trabalho.


2.  Eliseu, um pai diferente

Embora sempre em demanda para venda de suas  mercadorias, em sua rota mais costumeira, que ia de Belém, passando pela Samaria,  Galileia, até chegar a Damasco, ele  não descurava do que acontecia em nosso lar, fincado em Betânia, na Judeia, proximidades  de Jericó e Jerusalém. Sua primeira parada era em Emaús.

Sim, porque papai era uma presença  forte em nossas vidas, até quando se fazia invisível de nossos olhos, conhecíamos o que lhe era do agrado e o que porventura lhe contrariava.

Os costumes desse tempo, desse meu tempo que ora translado a você, caro(a) leitor(a),  pelo fio de ouro de  recordações que sobrevoam sobre a própria história do mundo, definiam, literal e etimologicamente, o pai, como oïkodespotés, cujo significado era  “déspota doméstico”.

Em que pesasse a tradição, Eliseu, meu pai não vestia esse figurino, pois era a alegria em pessoa. Seus gestos largos contagiavam íntimos e estranhos, e a todos cativava com sua prosa alegre e sua franca e sempre pronta generosidade.

Vivíamos em folgança de toda e qualquer necessidade . Até o supérfluo nos era prodigalizado pelos fartos recursos de nosso genitor , como vestidos de alto preço e bebidas e alimentos  estrangeiros, oriundos de diferentes povos  e terras distantes.  

Apesar de sua extrema bondade para com os menos afortunados, ainda acrescia em seus dotes a prudência nas compras  e a temperança nos gastos. Seu pai, Absalão, que em suas viagens comerciais conheceu a cidade de Jerusalém e privava com os doutores da lei, na época, queria o filho Eliseu como um entre os intérpretes da lei e da Torá.

Contudo,  a força do sangue o fez, ao feitio do pai, um comerciante, que em nosso idioma hebraico se denomina “soher” ( o viajante).Pelo que sei, nunca vi em meu pai   a mínima expectativa egoísta por recompensas, do céu ou da terra, a cada vez que prestava a alguém um beneficio qualquer.  Vivia a cada dia os seus próprios cuidados e venturas. Esse seu simples cuidar bem do dia presente  o recompensava nos dias futuros.

          Obrigou-me aos estudos, mas quando atingi 12 anos de idade, me deixou seguir a própria vocação, desde que voltada para a honestidade e a decência.

3- Início do meu trabalho

          Sendo eu o primogênito, por certo – dadas as responsabilidades dessa investidura familiar – me caberia, por direito, uma maior parte na herança de meu pai.

Ele ainda tocava os seus negócios e era abundante o seu patrimônio, mas de seus haveres não quis, para começar os meus negócios , senão  na proporção igual a que caberia a cada um dos meus demais  irmãos.

Eu não poderia ter começado no topo, pois meu pai sempre ensinou que a montanha se escala a partir do sopé. Quem não conhece a brisa dos vales não se familiariza com facilidade à altura dos montes.

Seu raio de ação se estendia por sítios afastados, desde a Judeia até Sídon, alcançando as escarpas do Monte Líbano. Mas Betânia era a sua casa, o seu ar e a sua terra, a sua água e o seu vinho.

Dessa sua rota pelo Mediterrâneo, descarregava suas embarcações com produtos comprados de povos distantes. Depois redistribuía suas caravanas pelos caminhos da Galileia, tendo como parada costumeira a cidade de Caná.

Após refazer-se do cansaço do itinerário, rompia com seus homens Samaria  a dentro, até chegar em seu lar na cidade de Betânia.

Como visto, comecei como modesto vendedor ambulante e podia contar com o melhor dos fornecedores daquele tempo para ir adiante na empresa abraçada. Sim, Eliseu, meu pai, me destinava grandes partidas de tecidos finos, como túnicas púrpuras de Sídon, panos finos de Bisso, anéis e crescentes de ouro, e até mesmo tapetes luxuosos.

Por tudo isto, além de itens de menor custo para vendas mais fáceis de realizar, sempre fiz questão de por eles pagar o preço justo avençado por papai. Ao ponto de, certa vez, ele me ensinar, todo sorridente, que para ser um bom comerciante é necessário regatear o preço, pechinchar com o fornecedor, que este não tomará como ofensa, mas como prática comum entre todos os que militam em compras e vendas.

4 - A sucessão indesejada

Aprendi, no curso de minha atividade comercial, que o ideal era sempre ter em mente os ajuntamentos humanos, conhecendo com antecipação os pretextos das efemérides mais significativas do calendário.

Por outro lado, não me preocupava tanto com esse detalhe, aliás, importante, porque já possuía uma clientela a quem sempre oferecia bom preço e qualidade nos produtos vendidos.

Seguindo as pegadas do já velho Eliseu, eu achava fundamental fazer o melhor que pudesse e colocar o freguês em primeiro lugar. Nos mercados havia muito a presença feminina, com quem seria difícil disputar a preferência dos compradores, não fossem as lições e exemplos de meu pai no trato com as pessoas e como fechar uma operação de venda.

A vida agitada de Eliseu, mesmo bem fornido de recursos amoedados, por certo já lhe pesava sobre os ombros. Na sua teima de manter o ritmo de seus tempos de moço, sentia fraquejar-lhe as forças nas ocupações do dia a dia. Daquele afã de um dia em cada lugar, a mudar de ares e terras de um momento para  outro e isto não lhe fazia bem.

Quando  contava 25 anos de idade fui convocado por Tamar, minha mãe, e pelos meus irmãos e irmãs mais novos, a tomar o leme dos negócios da família. Do contrário, haveria o risco de nosso tão amado pai seguir, antes de chegado o seu tempo,  uma viagem diferente, em rumo ignorado e sem volta.

Confesso que me sobressaltei ante essa proposta, pois meu pai parecia ainda forte, dada a sua lucidez impressionante, apesar dos sintomas de cansaço que a custo disfarçava da própria família.

Ainda assim, ele permanecia como a referência de  um rochedo. Agora mais sábio ainda, mais amável ainda, mais tolerante do que sempre fora.

E eis que em meio  a essa transição para a chefia dos empreendimentos familiares, obviamente com maiores encargos na provisão abundante a que nosso pai nos acostumara,  confesso ter perdido noites de sono. Meditava como enfeixar entre as mãos tudo aquilo que ele  conquistara ao longo de sua vida de mercador decente, sempre regido  pelos  princípios da ética e da moral, num campo difícil como esse, que é comprar e vender.

5- Fasel, meu irmão rebelde
Aquela minha mudança de status, a que na verdade fiquei  sujeito de então em diante, aparentemente sem qualquer oposição, veio ocorrer, contudo, um fato lamentável.  O fato se deu por conta de meu irmão mais novo, Fasel.

Não tenho certeza, porque, aliás, penso mesmo que nem ele sabia o que realmente queria, mas esse fato fez eclodir ( e considerei normal) um certo desconforto pelo fato de  eu,  Naul, ser o destacado para levar avante a chefia da economia familiar.

Meu irmão caçula, por conta disso,  resolveu ir-se embora de casa.  Estou certo de que, com a leitura  deste  velho pergaminho, vocês possam aquilatar a nobreza do caráter e a dimensão da alma do meu pai.

0 comentários:

Postar um comentário

Comentários sempre serão bem-vindos!
Para assinar sua mensagem, escolha a opção "Comentar como -Nome/URL-" bastando deixar o campo URL vazio caso você não tenha um endereço na internet. Forte abraço!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...