Cedo o conheci na vida. Ou melhor, conheci-o quando comecei a conhecer a vida. Na escola da pequena cidade, que diferia da escolinha rural de onde saíra, ainda de calças curtas, para a só obrigação de concluir o antigo Curso Primário.
Sim, na cidade tudo era diferente, ainda que naquele tempo – década de 1960 – a cidade ainda guardava, nos hábitos de seus moradores, muitos costumes rurais: domicílios com fossas e poços, terrenos cercados sobre os quais respingavam alguns equinos e muares, e até mangueiros de porcos, escondidos nos subúrbios, longe da higiene e da cidade.
Mas, afinal, qual o luxo que a escola urbana somava sobre aquela de meu cafundó, já então saudoso, da Fazenda Santa Rosa? Ah, sim! Havia no então Grupo Escolar Amador Bueno, quando então cursava o 4º ano (primário), o luxo de um dentista. Não só pelo luxo de contar com um profissional – e dos ótimos entre os quais mais tarde vim a conhecer.
O luxo se agregava, de forma ainda mais substantiva, na alma desse que, a esta altura do texto, me coloco a tentar descrever.
Aos primeiros dias de aula, aos quais estranhei bastante pelo número aumentado de meus colegas, fui chamado pela inspetora de alunos, quando brigava com um probleminha de aritmética. A surpresa da convocação não teria sido maior se a inspetora, uma senhora espetada num sapato salto alto e entubada numa saia plissada, não tivesse me anunciado de chofre o motivo em me retirar de plena aula: “Dentista.”.
“Por que justo eu ?“ – pensava comigo, a me perguntar, enquanto meus passos acompanharam de forma automática aquela funcionária, cujo óculos a custo se equilibrava sobre o nariz e ocultava a beleza ou feiura de sua face.
“E agora? Cadê minha mãe para me acompanhar? Dentista é como médico.Das poucas vezes que fui ao doutor Rafael, lá estava minha mãe ao meu lado. E agora, quem me acompanha? Se ao menos minha avó...Meu diálogo interior se desenvolvia rapidamente, mas não a tempo de ser concluído. Eis que a inspetora me indicou, de modo indiferente, aliás natural, sem as atenuantes que julgava mister e necessária, subestimando minha pouca idade. Não. Ela simplesmente mostrou a porta do consultório e me ordenou que aguardasse. Era uma porta chique para os meus olhos, acostumados com portas mais humildes, dessas que selam casas da zona rural.
Ali, sentado, eu ouvia o zunido de um motor, que me fez lembrar a moenda de cana da fazenda, apetrecho que meu avô usava como primeira etapa para fazer aguardente de ótima qualidade. Não (nada tinha de moenda), apesar de som bem parecido, aquele aparelho com um bico, manejado pelas mãos do doutor na boca de um coleguinha desconhecido. Aliás, era uma menina. Por se tratar de uma menina, e por sinal de menor estatura da que então eu ostentava, senti vergonha por estar assim com tanto medo...
Primeiro, que eu era homem e que e meu avô Manuel Fontes me ensinara, desde sempre que “homem que é homem não chora” – mas que, naquele momento, não estava ali. Pois se ele estivesse comigo eu não estaria a tremer como uma geleia sacudida num prato.
Por outro lado, era bom ele estar ausente, pois eu sentiria muita vergonha se ele me visse chorar. Pareceu-me demorada a espera. Mas na realidade, o tempo decorrido se fez mais espesso por conta do meu estado de espírito em inusitada apreensão.
De vez em quando o dentista me lançava um olhar, em que se reconhecia nele dimanar ondas de bondade e simpatia. Fiquei muito feliz (e orgulhoso) quando ele me chamou pelo nome. Pelo meu nome e me puxou suavemente o ombro, indicando-me a cadeira. Para me assentar e ele iniciar o seu trabalho. Inédito para mim, rotina para ele.
Daí, uma vez sentado, vi ainda maior a sua estatura em relação aos meus 11 anos de idade, nos idos de 1959. Lembro-me que ele me indagou sobre coisas triviais: “onde você mora? Quem são seus pais?
E como minha história era um pouco diferente, pois eu viera da zona rural, ele me perguntou sobre fatos da fazenda. Contei-lhe sobre os animais, a saudade que já sentia de meus pais e avós e mesmo das travessuras que fazia lá na roça.
Feito este preparo (psicológico) me ordenou que abrisse a boca. Agora, não para falar, mas para ele conferir o estado dos meus dentes.
Senti-me perfeitamente à vontade com o meu já novo amigo, apesar da distância de sua idade e de sua posição social. Arrisquei uma pergunta, talvez imprópria,mas para uma criança tudo é natural. Ele percebeu a minha curiosidade no ar e desejou me socorrer numa possível dúvida.
- O quê, meu querido, você quer perguntar para o Dr Rubens (disse apontando para si mesmo).
- Olha, doutor Rubens, eu queria saber uma coisa, sim. E acho que o senhor é a pessoa certa para me esclarecer essa dúvida – concluí meio sem jeito.
- Pode falar, meu filho, disse ele cruzando os braços.
- Doutor....
- Rubens (repetiu-me o nome).
- Sim, Doutor Rubens, meu bisavô, o seu Julião Perez, amigo do Sr. Chico Paloni, tem costume de vender ou barganhar cavalos...
- Ah...(disse ele surpreso) Me conta. Você então tem o seu bisavô vivo?
- Ah, tenho sim – repetir com compreensível orgulho -, e minha bisavó também vive e goza de muito boa saúde.
- Oh, isso é uma bênção. Mas o que você quer saber mesmo, meu filho?
- Ora, sim! O seu Julião, meu bisavô, e todo esse pessoal que negocia cavalos, sempre abrem a boca do animal e, pelas marcas amarelas dos dentes, sabem certinho quantos anos tem o animal. Isso é verdade ou é mentira, doutor Rubens?
Ah, ele riu muito pela pergunta inesperada e, a bem da verdade, inadequada, mas não se mostrou nem um pouco contrafeito. Ria-se, talvez, por ter conseguido me deixar à vontade, quase um confidente. E saiu-se muito bem:
- Esses homens, coo seu bisavô, o Sr Julião e outros da idade dele, são pessoas que aprenderam com a sabedoria da Natureza. Eu não sou o profissional indicado para confirmar ou desmentir, a relação do aspecto dos dentes com a idade de um cavalo. Isso é da competência de um veterinário, que estudou tudo sobre animais. Mas, esteja certo, seu bisavô sabe o que diz e o que faz.
Quebrara-se totalmente a barreira entre o paciente e o doutor Rubens. Uma vez percebida essa condição, ele me perguntou:
- Você nunca foi ao dentista?
- Não, doutor Rubens. Lá na fazenda, a gente, quando o dente amolecia, minha mãe pegava uma linha, dava um puxão, arrancava e jogava em cima da casa para nascer outro.l Foi sempre assim.
Ele sorriu, mais com os olhos, a fim de não me fazer sentir-me desconcertado.
À sua ordem, abri a boca. Pelo visto, ele não gostou nada do que viu. Mais ou menos quando meu bisavô Julião, abria a boca de um equino e conferia sua arcada dentária.
E concluiu, com aquela calma que era só dele, Dr Rubens Barbosa Martins :
- Em breve vou te chamar para tratar desses dentinhos. Agora que já somos amigos, tudo vai ser mais fácil...
Eu não sabia que a partir daquele instante, durante momentos difíceis de nossa família, eu obtivera a graça de poder contar com um Amigo, a quem eu podia confiar, não apenas os meus dentes, mas a minha vida. E, mais tarde, como se não bastasse a dimensão dessa bênção, veio de acréscimo, a grata presença da esposa de Dr. Rubens, a imortal e saudosa Dona Elôisa Costa Martins.
Hoje, pelas mãos de Lúcia Helena e Regina Cláudia, recebo, com o coração aos pulos, um mimo inesquecível, ilustrado com a foto de meus eternos amigos e protetores : DR RUBENS e D.ELÔISA. Tudo isto representa bem mais do que em minha vida de roceiro eu pedi a Deus.
Geraldo Generoso – Ipaussu, aos 2 de março de 2012, transcrito de um alfarrábio datado de 21/02/2007.
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