Num intervalo da jornada, numa tarde em que os serviçais desatrelavam os animais de sela e carga, e a tarde descambava rumo à noite, anunciadora de estrelas, meu pai fez servir o repasto, bem ali, ás margens do Lago Meron, abundante de água pura e verdes pastos em seu entorno, onde as alimárias se entretinham a mastigar e sacudir as caudas.
Contando eu ainda 12 para 13 anos de idade, o mercador Eliseu, meu pai, me elegera seu discípulo, prevendo a minha condição de sucessor de seus negócios. Para tanto, fazia-me acompanhar em suas viagens, desde Betânia, sua base administrativa, até às bordas da Fenícia, Síria e Líbano, quando não indo até mais além, onde mantinha seus entrepostos com equipe que ele mesmo formou e treinou ao longo de sua vida proveitosamente errante.
Por essa época, meu pai era ainda um varão vigoroso. Não era de muitas palavras, pois entendia ser a vida muito breve para o desperdício de palavras levianas, jogadas ao ar, sem nenhuma serventia que a cansar os ouvintes. Foi ele o meu mestre, somado à condição de pai, a quem cumpre, em primeiro lugar, educar o filho para a vida.
Meu pai Eliseu, nem de longe, poderia ser considerado um místico, ainda que eu tenha encontrado nele o mais sábio instrutor que eu poderia desejar. Foi assim que ele, mesmo tendo em conta o desconforto de mamãe por somar minha ausência à dor pela falta que ele fazia no lar, houve por bem me fazer seu acompanhante em suas viagens.
No mundo dos negócios, meu pai era insuperável, ainda que jamais se revelasse um homem ambicioso ou capaz do mínimo desvio dos preceitos éticos. Sou reconhecidamente suspeito para afirmar, mas creio que, qualquer que fosse o ramo de atividade que meu pai houvesse por abraçar em sua vida, ele sempre seria, com certeza, um campeão em seu ofício.
A essa altura, do tempo e do espaço, papai me repassara muitas lições sobre a arte de comprar e vender e as muitas implicações que essas tarefas requeriam. Nessa noite, no frescor da aragem que soprava do lago, casada com o silêncio daquelas cercanias, com os ajudantes todos dados ao repouso, cada qual em seu canto, Eliseu começou mais uma lição, na medida que, sob a luz de uma tocha alimentada por azeite, eu registrava mais aquela aula em um pergaminho que ele me confiara para tal finalidade.
E então, Eliseu, meu pai, principiou assim o seu discurso:
- Meu filho, se te faço acompanhar-me nas caravanas, muitas vezes de longo percurso e pouco descanso, como nesta em que ora empreendemos, é para que possas melhor fixar o aprendizado que me cumpre te confiar. Não se aprende somente com os ouvidos, ainda que atentos como os teus. Uma viagem, qualquer viagem, sempre tem algo a nos ensinar, através dos cinco portais que nos ligam a este mundo. Sim, porque tu vês com os teus próprios olhos o horizonte que recua ao preço dos teus passos. Experimentas, em teu rosto a poeira que as caravanas espalham pelos ares; tateias as pedras que, ainda em sua mudez, vos falam de vias rudes e da impermanência das coisas e dos seres. Tornas-te capaz de sentir o aroma dos pomares e a fetidez dos pântanos. Assim é a vida: uma viagem. Feliz de quem, como nós, nos fazemos viajantes, por destino e vocação.
- Pai, já me ensinastes os rudimentos da arte de vender, como na lição anterior em que nos detemos em Garizin, na Samaria. Recordo-me de que me falaste sobre a diversidade das estações em nossa terra, já que o vosso comércio abrange grande área de atuação. Bem me alertastes para não destinar vendas de linho em Jerusalém, mas mantas de lã, por conta do frio reinante, da mesma forma que me indicaste tal tipo de produto mais apropriadas a Jericó, onde impera o calor na maior parte do tempo.
- Sim, foi o que prescrevi como válido, pois, como disseste, cobrimos uma vasta área com nossas mercadorias. Temos a responsabilidade de prosperar, como tudo na Natureza prospera sem cessar. Gostemos da riqueza, mas jamais a amemos mais do que a nós mesmos. Resguardemos na paz dinâmica do dever cumprido, sejam por quais terras nossos passos nos conduzirem.
- De fato, tenho notado isso, como o senhor faz, literalmente, ouvidos de mercador ante a peroração de seus vendedores. Mas eu acho, meu pai, que o ato de comprar, para em seguida vender – e nem sempre se vende logo em seguida – depende mais da sorte do que a própria venda em si mesma.
E prosseguiu Elizeu, meu pai, em sua ensinança :
- Os comerciantes comuns confiam apenas nos próprios bens e em suas economias. Os verdadeiros, confiam em si mesmos, ao ponto de serem capazes de reconstruir do nada o tudo que perder, por um ou outro motivo. E não te iludo, meu filho, que são muitas as razões para que, mesmo grandes somas de dinheiro e estoque, se percam de uma hora para outra. Mas, o tempo urge e nos obriga ao repouso, não sem que antes eu te deixe uma exortação fundamental como ponto alto dos conselhos desta noite:
Olha para tudo o que comprar com o bom senso de que todas as coisas são mutantes. Não necessariamente finitas, mas nada permanece como é para sempre. Umas mais outras menos, todas as coisas tem tempo de duração limitada. No interior do ferro se oculta a ferrugem. No próprio cerne da madeira se esconde a podridão vindoura. Sem falar em produtos mais perecíveis, como as frutas – mesmo as secas como a tâmara e os figos ressecados. Portanto, sempre tenha em mente que, ninguém a quem venderes algo, estará comprando uma coisa que nunca precisará de outra para a substituir. Ainda bem que assim é, pois isto explica o eterno círculo do mercado. Cuida para que teus ossos não te sejam peso em tua carne, sempre evitando enxergar no freguês apenas um instrumento do teu lucro. Seja sempre fiel a tua balança, para que sempre esteja firmada na justiça a tua consciência.
Os homens da nossa caravana já dormiam a sono solto, a perceber pelo ronco insistente de Mohamad, o egípcio, que papai, propositalmente, por conta desse hábito, tinha o seu catre colocado no lado oposto da tenda.
Pedindo-lhe a bênção da noite – quase madrugada – também estendi o corpo para o descanso, vendo pela fresta o pálio celeste, salpicado de estrelas, como ovelhas luminosas no imenso pasto do infinito.
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